O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), no uso de suas atribuições legais e regimentais,
CONSIDERANDO o direito fundamental à educação (arts. 6o, 205 e seguintes da Constituição Federal) e o disposto na Lei no 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e na Lei no 13.005/2014 – Plano Nacional de Educação;
CONSIDERANDO a Lei no 7.210/1984 – Lei de Execução Penal, que estabelece o direito da pessoa privada de liberdade à educação, cultura, atividades intelectuais e o acesso a livros e bibliotecas, ressaltando a finalidade de reintegração social por meio da individualização da pena (arts. 17 a 21, 41 e 126);
CONSIDERANDO a Lei no 13.696/2018, que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita como estratégia permanente para universalizar o acesso aos livros, à leitura, à escrita, à literatura e às bibliotecas de acesso público no Brasil;
CONSIDERANDO que o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciário tem entre suas atribuições fomentar a implementação de medidas protetivas e de projetos de capacitação profissional e reinserção social do interno e do egresso do sistema carcerário (art. 1o, §1o, IV, da Lei no 12.106/2009);
CONSIDERANDO a decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal proferida em agravo regimental no HC no 190.806/SC, que reconheceu o direito à remição de pena pela leitura, considerado o escopo da ressocialização em que se inserem as atividades de educação, e determinou a expedição de recomendação ao CNJ para que sejam implementadas condições básicas de estudos no sistema carcerário;
CONSIDERANDO as Regras de Nelson Mandela – Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, especialmente aquelas que estabelecem o direito à educação, à biblioteca e às atividades culturais (Regras 4-2, 41, 64, 92, 104, 105 e 117);
CONSIDERANDO as Regras de Bangkok – Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras, no que tange aos princípios de não discriminação e de reconhecimento das especificidades do encarceramento feminino;
CONSIDERANDO os Princípios de Yogyakarta para aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero, que estabelecem o direito ao trabalho (Princípio 12), ao tratamento humano durante a detenção (Princípio 9) e a não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante (Princípio 10);
CONSIDERANDO o compromisso do Estado Brasileiro com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, que inclui o objetivo de assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, além de promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos (ODS 4);
CONSIDERANDO a Recomendação CNJ no 44/2013, que dispõe sobre atividades educacionais complementares para fins de remição da pena pelo estudo e estabelece critérios para a admissão pela leitura;
CONSIDERANDO a Resolução no 2/2010, do Conselho Nacional de Educação, que dispõe sobre as diretrizes nacionais para a oferta de educação às pessoas privadas de liberdade em estabelecimentos penais; e
CONSIDERANDO a Resolução no 3/2009, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que dispõe sobre as diretrizes nacionais para a oferta de educação nos estabelecimentos penais;
CONSIDERANDO a deliberação do Plenário do CNJ no Ato Normativo no 0001883-74.2021.2.00.0000, na 330ª Sessão Ordinária, realizada em 4 de maio de 2021;
RESOLVE
Art. 1o Estabelecer procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liberdade.
Art. 2o O reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas considerará as atividades escolares, as práticas sociais educativas não-escolares e a leitura de obras literárias.
Parágrafo único. Para fins desta resolução, considera-se:
I – atividades escolares: aquelas de caráter escolar organizadas formalmente pelos sistemas oficiais de ensino, de competência dos Estados, do Distrito Federal e, no caso do sistema penitenciário federal, da União, que cumprem os requisitos legais de carga horária, matrícula, corpo docente, avaliação e certificação de elevação de escolaridade; e
II – práticas sociais educativas não-escolares: atividades de socialização e de educação não-escolar, de autoaprendizagem ou de aprendizagem coletiva, assim entendidas aquelas que ampliam as possibilidades de educação para além das disciplinas escolares, tais como as de natureza cultural, esportiva, de capacitação profissional, de saúde, dentre outras, de participação voluntária, integradas ao projeto político-pedagógico (PPP) da unidade ou do sistema prisional e executadas por iniciativas autônomas, instituições de ensino públicas ou privadas e pessoas e instituições autorizadas ou conveniadas com o poder público para esse fim.
Art. 3o O reconhecimento do direito à remição de pena pela participação em atividades de educação escolar considerará o número de horas correspondente à efetiva participação da pessoa privada de liberdade nas atividades educacionais, independentemente de aproveitamento, exceto, quanto ao último aspecto, quando a pessoa tiver sido autorizada a estudar fora da unidade de privação de liberdade, hipótese em que terá de comprovar, mensalmente, por meio da autoridade educacional competente, a frequência e o aproveitamento escolar.
Parágrafo único. Em caso de a pessoa privada de liberdade não estar vinculada a atividades regulares de ensino no interior da unidade e realizar estudos por conta própria, ou com acompanhamento pedagógico não-escolar, logrando, com isso, obter aprovação nos exames que certificam a conclusão do ensino fundamental ou médio (Encceja ou outros) e aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio – Enem, será considerada como base de cálculo para fins de cômputo das horas visando à remição da pena 50% (cinquenta por cento) da carga horária definida legalmente para cada nível de ensino, fundamental ou médio, no montante de 1.600 (mil e seiscentas) horas para os anos finais do ensino fundamental e 1.200 (mil e duzentas) horas para o ensino médio ou educação profissional técnica de nível médio, conforme o art. 4o da Resolução no 03/2010 do Conselho Nacional de Educação, acrescida de 1/3 (um terço) por conclusão de nível de educação, a fim de se dar plena aplicação ao disposto no art. 126, § 5o, da LEP.
Art. 4o O reconhecimento do direito à remição de pena pela participação em práticas sociais educativas não-escolares, excetuada a leitura, considerará a existência de projeto com os seguintes requisitos:
I – especificação da modalidade de oferta, se presencial ou a distância;
II – indicação de pessoa ou instituição responsável por sua execução e dos educadores ou tutores que acompanharão as atividades desenvolvidas;
III – objetivos propostos;
IV – referenciais teóricos e metodológicos a serem observados;
V – carga horária a ser ministrada e conteúdo programático;
VI – forma de realização dos registros de frequência; e
VII – registro de participação da pessoa privada de liberdade nas atividades realizadas.
Parágrafo único. A participação nessas práticas sociais educativas ensejará remição de pena na mesma medida das atividades escolares (artigo 3o), considerando-se para o cálculo da carga horária a frequência efetiva da pessoa privada de liberdade nas atividades realizadas.
Art. 5o Terão direito à remição de pena pela leitura as pessoas privadas de liberdade que comprovarem a leitura de qualquer obra literária, independentemente de participação em projetos ou de lista prévia de títulos autorizados, considerando-se que:
I – a atividade de leitura terá caráter voluntário e será realizada com as obras literárias constantes no acervo bibliográfico da biblioteca da unidade de privação de liberdade;
II – o acervo bibliográfico poderá ser renovado por meio de doações de visitantes ou organizações da sociedade civil, sendo vedada toda e qualquer censura a obras literárias, religiosas, filosóficas ou científicas, nos termos dos art. 5o, IX, e 220, § 2o, da Constituição Federal;
III – o acesso ao acervo da biblioteca da unidade de privação de liberdade será assegurado a todas as pessoas presas ou internadas cautelarmente e àquelas em cumprimento de pena ou de medida de segurança, independentemente do regime de privação de liberdade ou regime disciplinar em que se encontrem;
IV – para fins de remição de pena pela leitura, a pessoa em privação de liberdade registrará o empréstimo de obra literária do acervo da biblioteca da unidade, momento a partir do qual terá o prazo de 21 (vinte e um) a 30 (trinta) dias para realizar a leitura, devendo apresentar, em até 10 (dez) dias após esse período, um relatório de leitura a respeito da obra, conforme roteiro a ser fornecido pelo Juízo competente ou Comissão de Validação;
V – para cada obra lida corresponderá a remição de 4 (quatro) dias de pena, limitando-se, no prazo de 12 (doze) meses, a até 12 (doze) obras efetivamente lidas e avaliadas e assegurando-se a possibilidade de remir até 48 (quarenta e oito) dias a cada período de 12 (doze) meses.
§ 1o O Juízo competente instituirá Comissão de Validação, com atribuição de analisar o relatório de leitura, considerando-se, conforme o grau de letramento, alfabetização e escolarização da pessoa privada de liberdade, a estética textual (legibilidade e organização do relatório), a fidedignidade (autoria) e a clareza do texto (tema e assunto do livro lido), observadas as seguintes características:
I – a Comissão de Validação será composta por membros do Poder Executivo, especialmente aqueles ligados aos órgãos gestores da educação nos Estados e Distrito Federal e responsáveis pelas políticas de educação no sistema prisional da unidade federativa ou União, incluindo docentes e bibliotecários que atuam na unidade, bem como representantes de organizações da sociedade civil, de iniciativas autônomas e de instituições de ensino públicas ou privadas, além de pessoas privadas de liberdade e familiares;
II – a participação na Comissão de Validação terá caráter voluntário e não gerará qualquer tipo de vínculo empregatício ou laboral com a Administração Pública ou com o Poder Judiciário; e
III – a validação do relatório de leitura não assumirá caráter de avaliação pedagógica ou de prova, devendo limitar-se à verificação da leitura e ser realizada no prazo de 30 (trinta) dias, contados da entrega do documento pela pessoa privada de liberdade.
§ 2o Deverão ser previstas formas de auxílio para fins de validação do relatório de leitura de pessoas em fase de alfabetização, podendo-se adotar estratégias específicas de leitura entre pares, leitura de audiobooks, relatório de leitura oral de pessoas não-alfabetizadas ou, ainda, registro do conteúdo lido por meio de outras formas de expressão, como o desenho.
§ 3o O Poder Público zelará pela disponibilização de livros em braile ou audiobooks para pessoas com deficiências visual, intelectual e analfabetas, prevendo-se formas específicas para a validação dos relatórios de leitura;
§ 4o Na composição do acervo da biblioteca da unidade de privação de liberdade deverá ser assegurada a diversidade de autores e gêneros textuais, incluindo acervo para acesso à leitura por estrangeiros, sendo vedada toda e qualquer forma de censura.
Art. 6o Além do previsto no artigo anterior, o Juízo competente zelará para que as unidades de privação de liberdade promovam a realização de projetos de fomento e qualificação da leitura em parceria com iniciativas autônomas das pessoas presas, internadas e seus familiares, organizações da sociedade civil, instituições de ensino e órgãos públicos de educação, cultura, direitos humanos, dentre outros, observando:
I – a ampla divulgação da realização dos projetos para as pessoas privadas de liberdade, a fim de possibilitar a adesão voluntária e o interesse universal pela participação;
II – a pactuação com a equipe organizadora do projeto acerca dos critérios de seleção das pessoas interessadas;
III – a oferta de projetos para os diferentes níveis de letramento, alfabetização e escolarização;
IV – a garantia de participação dos responsáveis pelos projetos de leitura e dos alunos presos na escolha das obras que serão tratadas nos projetos de leitura, valorizando-se a diversidade de autores e gêneros textuais, sendo vedada a censura; e
V – a garantia da remição de pena pela leitura dos livros abordados no projeto, cumpridos os requisitos previstos neste artigo.
Art. 7o A participação da pessoa privada de liberdade em atividades de leitura e em práticas sociais educativas não-escolares para fins de remição de pena não afastará as hipóteses de remição pelo trabalho ou educação escolar, sendo possível a cumulação das diferentes modalidades, cabendo ao Juízo competente zelar para que:
I – as pessoas privadas de liberdade possam frequentar as atividades descritas na presente resolução de forma cumulativa ou independente, sendo vedada a vinculação de participação em uma das modalidades de estudo como pré-requisito para a participação em quaisquer das outras atividades;
II – seja assegurado o registro de presença da pessoa inscrita na prática social educativa, com o respectivo cômputo de carga horária, em caso de ausência motivada por questões de saúde, caso fortuito, força maior e quando a não realização da atividade decorrer de ato injustificado da administração da unidade de privação de liberdade;
III – a direção da unidade de privação de liberdade encaminhe semestralmente, para homologação, a relação das pessoas que adquiriram o direito, naquele período, à remição de pena pelo estudo, reduzindo-se o prazo, individualmente, para os casos de pessoas que se encontrem em lapso menor para a progressão de regime; e
IV – a pessoa privada de liberdade tenha acesso à relação dos dias remidos por meio do estudo, incluídas as atividades escolares, a leitura e a participação em outras práticas sociais educativas.
Art. 8o Compete ao Poder Judiciário, especialmente aos Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, em articulação com os demais órgãos da execução penal e com a sociedade civil, a garantia do direito às práticas sociais educativas a todas as pessoas presas ou internadas cautelarmente e àquelas em cumprimento de pena ou de medida de segurança, independentemente do regime de privação de liberdade ou regime disciplinar em que se encontrem, objetivando:
I – assegurar o acesso universal aos livros para fins de remição, seja por meio de permissão para frequência às bibliotecas, seja mediante estratégia de circulação do acervo ou catálogos de livros para requisição;
II – fomentar a diversificação de estratégias de renovação do acervo em seus múltiplos formatos e de acesso às bibliotecas das unidades de privação de liberdade, bem como às iniciativas locais de estímulo à leitura e às práticas sociais educativas, inclusive com relação à integração entre projetos de educação não-escolar e o projeto político-pedagógico (PPP) de escolarização;
III – assegurar que todas as pessoas privadas de liberdade tenham acesso às informações acerca das práticas sociais educativas realizadas na unidade, bem como às informações sobre os procedimentos para o exercício do direito à remição de pena;
IV – fomentar e monitorar a execução das práticas sociais educativas e sua articulação com as políticas de educação escolar, especialmente com os Planos Estaduais de Educação;
V – garantir a efetividade das formas de registro e de comunicação entre unidades de privação de liberdade e a Vara de Execução, para fins de remição.
Art. 9o Fica revogada a Recomendação CNJ no 44/2013.
Art. 10. Esta resolução entra em vigor 30 (trinta) dias após sua publicação.
Ministro LUIZ FUX